quinta-feira, 29 de maio de 2025

Murmúrio

Há um som que não se ouve com os ouvidos e que faz o olhar tombar.
É um som que se recolhe entre silêncios,
feito maré mansa,
feito tempo que para — só pra lembrar que existe.

Não era uma palavra, nem um nome, nem um pedido.
Era só um “mmm” baixo, enrolado em suspiro,
como se o mundo inteiro coubesse ali,
na dobra de um abraço onde a cabeça pousa e os olhos desistem de lutar.

Tenho saudade desse murmúrio.

Saudade do som que vinha depois do toque,
do corpo que cedia não por fraqueza, mas por paz.
Do instante em que o peito virava abrigo
e o som que escapava não queria ser entendido — só sentido.

Era um som de estar.
De estar junto.
De estar dentro do tempo do outro.
De se encaixar no compasso da respiração alheia.

No murmúrio, lia promessas que nunca foram ditas, mas estavam todas ali.

Hoje o mundo fala alto demais.
Às vezes, na fresta entre um sonho e outro,
eu ainda ouço aquele murmúrio baixo de satisfação,
vindo de um tempo onde para ouvir o mar
era só encostar a cabeça no peito de alguém e descansar inteiro.

quarta-feira, 28 de maio de 2025

desejo e contenção ou pretérito mais que imperfeito

Há uma vontade que pulsa do peito até a garganta, querendo acontecer. É potente  mais potente que tudo que já vivi  e ao mesmo tempo discreta, gentil e quase invisível. Um fio de voz, uma batida de asas no escuro.

Mas às vezes, até o menor dos gestos pode ser insuportável para quem ainda está sangrando. 

Eu, um mensageiro com a carta na mão, parado diante da porta fechada. Não que ela esteja trancada — ela apenas pediu para não ser aberta. E mesmo assim, minha mão trêmula com a vontade de girar a maçaneta.

Não para invadir, para oferecer. Sem retorno algum. Um par de mãos silenciosas que chegam, fazem o que precisa ser feito e partem antes de qualquer desconforto. Uma presença sussurrada que diz: "Se você precisar, estou aqui. Se não, eu sei ir embora em silêncio."

Em vez disso, sentei no chão do corredor e abri o envelope só para mim. Lia o que eu mesmo havia escrito, como quem tenta descobrir se, entre as palavras, ainda morava algum gesto que não machucasse.

Lia com a mesma presença com que ela me olhava quando me ouvia — atenta, como se escutasse com os olhos; inteira, como se cada palavra merecesse espaço para respirar dentro dela. E ali, entre linhas que ninguém mais leria, eu a encontrei.

Encontrei-a repousando entre as palavras como uma flor prensada entre as páginas de um livro antigo. Uma flor densa de cheiro e calor; úmida, viva. Daquelas que a gente acende devagar, sentindo o corpo dissolver em riso e pele, numa névoa onde tudo pulsa e desabrocha. Lia, e era como se, por um breve instante, ela também me lesse de volta — entre fumaças do pretérito mais que imperfeito, entre silêncios que sabiam mais do que qualquer palavra.

E percebi que mesmo sem tocar a maçaneta, eu havia entrado — não na casa dela, mas no que ela havia deixado aqui. E um dia, talvez, a porta se abra novamente. E então, se for o tempo certo, eu estarei ali — com as mãos ainda cheias de silêncio.

domingo, 25 de maio de 2025

Ressonância ~modo avião

Eu era som.
Frequência viva, vibrando na pele e na alma.
Ela ouvia profundamente — com os olhos enormes.

Fomos música, marcha e folia.
Explosão de harmonia, êxtase de bala no carnaval de Olinda.
Uma energia infinita.
Na margem do caos, soleira de uma casa colorida.

Como num passe de estupidez:
Modo avião.
E a melodia, sem ter sinal, melancolia.
Tocou silêncio em todos clarins.
Virou ruído branco no espaço profundo.
Eco.

Mas consigo escutar de olhos fechados.
E mesmo que eu não consiga vê-la posso ouvir seu sorriso.
Ainda ressoando.