segunda-feira, 25 de agosto de 2025

por todos os poros possíveis

às vezes penso que vivemos isso de lugares tão distintos que algumas conversas foram por caminhos tortos, ecos tentando atravessar o abismo. o que eu digo já chega quebrado, o que você responde já vem com atraso. mesmo assim insisto. pego cada pergunta que ficou suspensa no ar e vou colocando uma ao lado da outra, fazendo um mosaico de cuidado, afeto e arte:

o que você vai dizer quando eu disser que não acredito em uma só palavra?
— que te ofereço tudo que tenho: palavra e gesto. o resto é silêncio e tempo.

e quando eu disser que seu amor é de plástico?
— estarei aqui, com as mãos cheias de silêncio, oferecendo minha própria carne.

se não vale o esforço nem o choro?
— talvez não valha mesmo. mas ainda assim, me pego chorando, me pegando no esforço. não sei até quando, mas sei que, enquanto for, é real.

se não há nada que me prenda aqui?
— eu sei, e ainda bem. se você ficar, que seja também por liberdade.

se eu te disser que tu não consegue mais me afetar?
— que seja porque a ferida virou cicatriz. e não porque não se importa mais.

se quem perdeu foi você?
— tô me reconstruindo com os cacos que sobraram. e até eles brilham.

pra que se torturar?
— só enquanto for verdade.

até no abismo existe eco, e o eco é sempre uma tentativa de encontro. talvez nunca falemos a mesma língua, talvez nossas traduções sejam falhas e tardias, mas ainda assim há beleza nesse esforço de atravessar. se não chegarmos um ao outro, ao menos teremos chegado mais perto de nós mesmos. por todos os poros possíveis.

domingo, 24 de agosto de 2025

risco, pele e cicatriz

a gente é também o que o mundo faz de nós. e somos ainda o que os outros permitem que sejamos. vestimos rostos diferentes para diferentes olhos. às vezes conscientemente, para sermos compreendidos, para criar identidade, para tecer conexão. mas muitas vezes inconscientemente. porque às vezes o personagem que entregamos é simplesmente o único que conseguimos sustentar. não é escolha. é herança de traumas passados, presentes e até futuros que ainda nos rondam.

pensei nisso pela história de medusa. não a vilã, mas a vítima. uma figura nascida da violação, da dor, da injustiça e da sobrevivência. ela não escolheu o monstro. foi evocada por mãos cruéis, pelo destino torcido, pelo olhar do outro. medusa é o personagem que irrompe quando a ferida não encontra cura. fatal, inevitável, sobrevivente.

já foi. já a encarei nos olhos, já petrifiquei. agora só me resta o trabalho lento de me esculpir de volta. lascar as pedras, despir as camadas de granito, expor a pele frágil, os riscos, as cicatrizes. talvez o que reste seja menos estátua e mais humano. talvez a gente seja sempre isso: um eterno petrificar-se e reencarnar novamente.

horizonte de eventos

obrigado por tudo.
passei dias esperando o sopro úmido das tuas palavras,
feito chuva no deserto.
cada notícia tua era alívio, alegria,
um corpo respirando de novo dentro do meu.
eu te amo — e isso me basta.
foi linda nossa história.
manhãs acesas, silêncios cúmplices, olhos que se buscavam.

te admiro como se admira um relâmpago.
beleza e perigo no mesmo instante.
corri atrás daquilo em que acreditava,
falei cada verdade que me incendiava.
isso me basta.
mesmo doendo, é lindo.
o mais lindo que já brilhou,
mesmo queimando as mãos.
a maior criação que já fiz,
esse fogo que ainda arde nas bordas do infinito.

sei que você cansou de lutar.
não corro mais atrás da inocência;
ninguém de fato o é.
não fujo mais da tua sentença.
aceito o fim inevitável,
a morte explosiva de uma supernova.

sinto muito não ter sido porto quando você precisava ancorar.
desculpe a paz que lhe roubei,
e o futuro esperado que não dei.
suporto a vida como um momento além do cais,
assistindo o eterno movimento dos barcos.

me dói o peso do que construímos e não soube sustentar.
mas te prometo: não repito os mesmos naufrágios.
nem com você, nem com ninguém, nem comigo.

vivi meses no maior transe da minha vida,
um hiperfoco sem fuga.
acordei e adormeci com teu nome aceso em minha cabeça.
não era festa, era ritual,
busca desesperada pelo teu rastro.
banal, errado. eu sei.
e agora o que resta é essa lucidez tardia,
que cintila como fogo-fátuo.

eu te amo pra caralho.
mesmo no fim, não consigo não dizer isso.
esperarei algum ruído teu,
até que o silêncio devore a esperança e reste apenas o ar limpo.
e fotografias guardadas numa caixa velha.

to tentando não acabar esse texto.
talvez o último momento conectado mesmo que tão distante.
to imaginando letras pra tu seguir viva nessa prosa.
mas é isso. o fim é assim, abrupto, numa quinta-feira à noite.

sábado, 23 de agosto de 2025

nas bordas da catástrofe

caiu como um meteoro, aniquilando e extinguindo todo mundo conhecido.
fechando ciclos, abrindo espaço para uma nova era.

o primeiro impacto foi catastrófico:
uma esfera de fogo atravessando o céu,
transformando um dia bonito de sol em inferno.
tudo ardendo, derretendo, incinerando
até a última gota virar combustível, até a última sombra virar luz.

o fogo do fim ardeu por dias.
gritos de terror eram levados pelo vento,
ventos fortes que mantinham a temperatura insuportável.
uma combustão perfeita, incontáveis graus celsius,
iluminando tão intensamente que cegou.

no fim, tudo endureceu.
sedimentos cobertos por cinza espessa,
camadas sobre camadas escondendo ainda o rubro da lava,
correndo em rios vermelhos sileciosos, ameaçando nova erupção.

depois do fim,
as cinzas, antes deserto, viraram húmus
e no meio da devastação, tímida,
rompeu o solo uma xanana.


domingo, 17 de agosto de 2025

organizar nossa luta pra gozar nossa vitória

tô feliz. pleno. vendo beleza no mundo.
e ao mesmo tempo, começo uma entrega:
coloco meu mundo nas tuas mãos.
minha vulnerabilidade, meu desejo mais profundo.
instrumento que pode me fazer feliz ou me ferir.

sei do tempo que leva pra reconstruir
o cristal da confiança que despedacei.
pedaço por pedaço, vou juntando cacos,
criando algo novo. um vitral de cores que a gente nunca viu antes.

é arriscado. é perigoso. é iminente.
mas é também verdade.
e por isso me jogo com coragem,
honra e dignidade.

te agradeço por me dar essa chance.
com entrega, estratégia e amor.
organizar nossa luta pra gozar nossa vitória.
e eu quero gozar com você.

felicidade e tesão transbordam,
vibrando de uma cabeça à outra,
corrente elétrica de prazer e criação.
eu quero gozar com você.

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

para quando o sol voltar: respostas, evidências e flores

sem saber as perguntas, ainda não sei que respostas cabem.
e que evidências existem além das que trago no corpo e na memória?
provas vividas na pele e testemunhos silenciosos guardados no olhar.

quanto às flores, arrisquei alguns palpites:

a primeira, óbvia, para acender, puxar, prender e soltar.

a segunda para presentear no instante presente, mas efêmera, precisa ser vivida antes que o tempo leve.

a terceira exige paciência para se abrir, mas é bela exatamente pela raridade do seu processo — leve o tempo que for.

talvez, no calor do sol e na seiva da vida, floresçam as respostas, se revelem as evidências, e se abram as flores.

segunda-feira, 11 de agosto de 2025

A beira de um atropelamento

pra construir uma rotina, dizem que precisa de uma constância de 21 dias. ontem se somaram 93 dias de uma rotina involuntária. mais de 4 vezes o necessário pra mudar qualquer vida. já é o suficiente pra construir ou destruir quase qualquer coisa.

3 meses de ausência presente. como um fantasma. em outro plano. tipo aquele filme os outros, eu consigo sentir, ouvir e até vê-la às vezes. mas ela não me sente, não me ouve e nem me vê. fecha os olhos, ouvidos, vira o rosto pro outro lado. pro mar, pro infinito, pra palma da mão. mas não pra mim.

ontem eu segui a rotina. me joguei na direção de sempre esperando resultados diferentes. como sempre, o risco de ver um fantasma é grande; e, como um filme de terror, fico sempre nessa expectativa. do clímax. do momento da revelação ou do apocalipse.

eu gosto de pensar que temos uma conexão diferente do usual. quando me jogo e meu coração não dispara logo penso que não vai ser dessa vez. mas quando a adrenalina tá saindo pelos poros eu tenho certeza que dessa vez vai. nunca vai, nunca foi. na real. mas eu sigo gostando de pensar assim.

ontem foi assim. me joguei na direção de sempre quase sem esperar nenhum resultado. o calo tá ficando rígido já, né? insensível. mas de longe eu te vi, fingi normalidade e segui reto, sem olhar pra trás. era só isso de novo? toda vez é isso, nem sei o que é resultado mais, só processo.

a adrenalina é cruel, do jeito que vem e dá toda energia do mundo, vai embora com a mesma velocidade. minhas pernas tremeram, minha chama apagou e o medo de perder nem sei mais o que aflorou. parei. nem lembro direito o que eu fiz, só sei que voltei. pra fazer o que eu também não sei. tanto é que não fiz — quase — nada.

quando te vi novamente, parei. foram tantos recados falados, escritos e através de gestos de vá embora. que eu parei. e atravessei para o outro lado da rua, como quem foge de um perigo. atravessei a beira de um atropelamento e corri de novo para o outro lado, direto e reto. sem olhar pra trás. o perigo sou eu e quem eu protegi ficou pra trás.

acredita que eu voltei de novo? nem eu acredito. mas é um lugar familiar ainda. o único que restou.

domingo, 10 de agosto de 2025

Ficar embora

Nas mãos o peso do abraço que não deveria ter soltado.
Na boca o gosto de cada palavra que devia ter falado.
Há erros grandes como montanhas.
Outros que mesmo tão pequenos como grãos de areia,
formaram um deserto de dunas entre nós.

Fui eu que levantei cada tijolo desse muro.
E não consegui mais atravessar.
Fui eu que, conhecendo o caminho, escolhi o mais difícil.
E caminhei descalço.

Busquei além do razoável.
Aproximei-me quando a distância já era sentença.
Não consegui fazer diferente, mesmo quando o diferente era a única chance.

Se pudesse apagar, apagava.
Se pudesse ir embora, ia.
Calor dissolvendo, deixando nada para lembrar.

Agora não posso mais buscar.
Mas, por enquanto, ainda se senta no meu peito como se fosse sua poltrona.

A conta-gotas

Dependendo das condições biopsicossociais, tudo que entra sai poesia.
Tempestade perfeita dentro de um filtro de barro.
Destilação lenta, cada gota carregando minerais de memórias e fantasmas.
Às vezes entra ventania, sai melancolia.
Entra 
intenso, sai silêncio.
Entra miragem, sai vertigem.
Entra amor, sai torpor.

Laboratório e altar. Cada gota atravessa deixando pra trás impurezas microscópicas.
E quando alcança a boca do filtro, se derrama em caminhos que você nem sabia que sabia. Nem que existia.

Sem peso, as últimas gotas caem ainda mais lentas, carregando o que sobrou do dia, restando suor, lágrimas e poesia. Lodo no fundo.

Na saída, eu lia cada verso filtrado na paciência do barro e decantado no tempo.

Sobras de breu sob o sol

A vontade de te encontrar extrapola tudo e quase não sobra nada. Quando percebo que sobrou alguma coisa eu vou lá e como na mesma hora.

Digerindo pensamentos dramáticos e dirigindo cenas de ação pra no final só restar alguns caracteres digitados. Letras que formam frases e dão vazão a alguma coisa. Quase não sobra nada.

É impressionante como nosso olhar não se encontra mais, mesmo quando a gente cruza a centímetros de distância. O calor foi embora e o frio também. O som não existe mais nem o silêncio. Quase não sobra nada.

Toco minha sinfonia para ninguém. Escrevo meus versos para um fantasma. Permaneço no mesmo lugar esperando algo que não vem. Alguém que não existe. Custa acreditar que já existiu, mas não existe mais. Quase não sobra nada.

O véu da noite na abóbada celeste vem caminhando a passos curtos mas constantes. O degradê do pôr do sol vai ficando quase monocromático, ainda cinza, azul e algo de branco. Mas o breu vem. Quase não sobra nada.

Não adianta correr em qualquer direção que seja. Já testei todas, mas meu sol tá nascendo e se pondo em outro lugar. Um lugar inalcançável. Quase não sobra nada.

Sobra uma saudade. Sobra uma casa. Sobra uma cidade inteira. Algumas palavras perdidas, inaudíveis, não ditas, desacompanhadas. Quase não.

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Lá maior com nona

Progressão para o paraíso com fins de registro, aprendizado e ressonância em lá maior com nona. Bem bonito, sabe? Profundo, pra dentro, intenso e ao mesmo tempo pleno.

A jornada é longa, o processo é lento. Mas olha, é massa, visse? Não deixa de olhar pela janela do ônibus, na moral mesmo. Começa do começo, né? Antes de começar. Na preparação, no sonho, no plano, no fenômeno. Antes de virar acontecimento, acontece na mente, em mil modelos, nenhum preditivo. Um bom plano é orgânico, estabelece alguns horizontes e se abre em todas as direções e dimensões.

Depois, se vence a cidade. Ela te puxa a cada curva, a cada possibilidade de retorno ela te chama. Mas você sabe seu propósito. Você segue pro porto. Não para ficar no cais, mas pra cruzar a baía. Pra ilha. Sem deixar de fantasiar. Mas à ilha dos acontecimentos. À ilha que se repete.

Peço força a todos os ancestrais para trilhar as curvas da vida e não sobrar em nenhuma. Nem me perder em nenhuma dobra. Porque o caminho é longo e o processo é lento. Mas com constância mecânica, repetição como mantra e transe orgânica a gente chega. Vem aí. Agora a gente chega. 

A chegança é surreal. A vida se desabroxa de outro jeito, feito um sonho. Ou será que essa é a vida real? O que vale a pena tá aqui. Tudo. De um mel branco fermentado a água doce mais límpida.

Aqui, o tempo espreguiça. O sol abraça. O corpo lembra da dança. As frutas são mais doces, o riso mais largo, o mar mais íntimo. Tudo flui numa linguagem mais suave. E o que antes era peso vira pólen. Aqui bate mais forte. Bio-psico-social.

Mas assim, o paraíso não é isento, tá? Não foi feito pra te salvar de ti mesmo. Aliás, não foi feito. Tá aí só. E tu atravessa com tu inteiro. Teus morangos, mas também teus fantasmas, e o sumo de ambos na boca. É um convite pra olhar o todo, o inteiro.

E então a ilha fica, mas a gente parte. Ou será o contrário? O mar se abre de novo, a cidade reaparece no horizonte. Mas agora é diferente. O paraíso não é um lugar, mas o jeito que o corpo habita o tempo e espaço. A gente não foge de si. Todo lugar que eu ia eu tava lá. E ali, nesse encontro, mora o paraíso. Ou o inferno. Depende do dia. Bio-psico-social.

Como se fosse flor

Férias de janeiro. Verão no talo. Casa de praia emprestada de amiga que estava em viagem astral. Ela deixou a chave dentro de um vasinho de flores pra gente pegar, mas nem precisava: a casa era aberta. Aberta mesmo. Tipo bioconstrução com conceito, poesia e janelas de vidro com todas as frestas e abismos expostos. Um suspiro de mata no nosso cangote. Ouvia-se até o silêncio do cipó. Era incrível de linda. A visão do paraíso.

Ficava longe da vila. Longe tipo cinco quilômetros. Ou seja: ou pedalando sob o sol de minha deusa ou dependendo da carona da boa vontade alheia. A vila era massa. Gente do mundo todo. As praias, uma extensão do céu. Mas o principal é que era na vila que as coisas funcionavam até tarde e tal: mercadinho, farmácia e tudo mais. Onde a gente tava não.

Uma das preocupações que derivaram desse fato foi a água. Água pra beber. Ainda bem que a gente tinha um filtro de água em casa. Mas olha, o nosso era de barro.
Bonito, ancestral, vintage-sertanejo e, lentíssimo. Muito lento.
A água caía de gota em gota e a gente tomava gole como quem bebe tempestade.
E o filtro, tadinho, meditava enquanto a gente queria era tragar água como se fosse flor. A conta não fechava.

E nessa ânsia de não querer incomodar ninguém não pedimos ajuda. Nem a nossa amiga que morava a uma casa de distancia e já tinha perguntado mais de uma vez "Tão precisando de alguma coisa?" e a gente "Não, que é isso! Não precisa se incomodar!". A gente passando sede e ela ali do lado com aquele filtro acoplado direto na torneira. Água abundante. A vergonha não matava, mas tava começando a desidratar.

Eis que o universo abre caminhos.

Ela nos convidou pra jantar. Um date duplo: nós, ela e o namorado que parecia um personagem secundário de um filme francês. A gente aceitou, óbvio — não só pelo afeto e pela pizza, mas sobremaneira pela missão secreta: encher nossas garrafas d’água.

Levamos as garrafas — duas, grandonas, bem discretas. Uma sua, uma minha. A missão era clara: agir naturalmente. No meio da conversa, fingir sede, caminhar até o filtro, dar aquela enchida displicente, tipo "ai, vou só molhar a boca rapidinho", e plim: abastecidos. Agentes do improviso. Espiãs do desespero hídrico.

O jantar foi ótimo. Pizza artesanal, massa de não sei o quê, molho que lembrava infância. Conversa massa, rimos até do vento. Chapadas, a gente ria de qualquer coisa — principalmente do namorado dela, que falava como se tivesse vindo de outro plano dimensional. Era cada frase enigmática, uma obra de arte involuntária.

Mas eis que…

A gente sequelou de encher as garrafas.
Passou o tempo, passou a pizza, passou o riso… passou a oportunidade.
Quando a gente percebeu, já tava todo mundo se recolhendo, apagando as velas, dizendo "boa noite" com voz de mantra e nos conduzindo para o adeus.

Aí veio o golpe de ousadia:
A pia da cozinha era bem na janela, o filtro do lado.
Uma janela baixa, virada pra frente da casa, bem ali no nosso caminho de saída.
Você lembra, né?
Num ato de pura insanidade e sede ancestral, estendi o braço pela janela como quem colhe uma fruta proibida no jardim do Éden. Abri o filtro num clique cirúrgico. A água jorrou. Enchi a primeira garrafa. Quase sem respirar. Coração disparado. Você me esperava na rua rindo ansiosamente em silêncio com a mão na boca.

Tava enchendo a segunda, só que aí...
BARULHO.

Um som vindo do quarto. Um rangido. Uma luz acendendo. Uma respiração suspeita.

Fechei o filtro na pressa. E saí correndo o mais silenciosamente possível, parecia cinema mudo misturado com explosões de um filme de ação comercial. Saímos correndo feito crianças que roubaram doce — ou adultas que furtaram água.

A gente ria do grotesco, do absurdo e do mais absoluto banal. Ria como quem ri do fim do mundo. Gritava "vai, vai, vai!", tropeçando no mato. Desesperadas. Libertadas. Hidratadas.

E aí a gente percebeu.
A câmera.

Sim.
A câmera de segurança, meu amigo!
Apontada direto pra janela da cozinha.
Filmando tudo.
Cada segundo.
A missão inteira.
Em Full HD.
O crime perfeito desmoronando sob o olhar frio de uma lente.

Me lembro que... até no paraíso tem sede.
E o que importa é que a gente sobreviveu mais um dia. Obrigado por tanto.

terça-feira, 5 de agosto de 2025

Caótico lúcido

me peguei na correnteza de novo. espécie de droga, espelho, eco e/ou sintoma.

só que de repente, fui pra outra coisa completamente aleatória, percebi quando já estava fundo n'outro fluxo.

ciente da linha tênua entre saúde e delírio. ciente do que deixar. ciente do que levar. faz tempo que sei. mas e o jeito, né?

só que não. prefiro muito mais a correnteza brava. gosto do que sinto quando tô nela. me sinto pequeno tamanha grandeza. e isso faz bem. extrapola meu eu. dilui nas profundezas, sob muitas camadas de vida que não tiveram tempo.

o outro fluxo compreendi como egóico, encimesmado, autocentrado. não gostei do sentimento. mesquinho, né? eu, eu, eu, eu.

só que não. percebi de novo — fui e voltei, né, to indo e voltando toda hora, sem referência — percebi que na verdade a correnteza continua sendo autocentramento. eu também.

a correnteza sou eu. no meu íntimo. tá dentro. não tem nada lá fora. no máximo uma mimetização da experiência na relação com o outro. se comportando como se ainda fosse presente.

quase entendi a correnteza como uma experiência psicotrópica. mas perdi as condições de dizer isso também. seria uma experiência psicotrópica por causa do extrapolamento do eu, né? morrer um pouco e voltar alguém outro.

mas eu mesmo que preparei isso tudo, disfarçado de transcendência, sou eu que fermento esse delírio. moribundo, mas sobrevivente.

não sei como fazer parar, não sei se quero parar, não sei se quero querer.

me peguei na correnteza de novo. espécie de droga, espelho, eco e/ou sintoma.

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Deixa mal resolvido mesmo

foi mal, por mesmísse comi seu coração.
não era fome.
era só um reflexo meu em você
e eu tenho essa mania de comer o que me reflete.

então é isso.
essa chance já foi.
ficou no tempo que eu não alcancei.

deixa mal resolvido mesmo.
vou fazer o que, né?
se tirar a faca pode morrer de hemorragia.

sonhei com cobra.
cobra em sonho é culpa, assim soube.
mas eu quis acreditar que era desejo. foda-se.

mate a culpa, salve o desejo,
fazendo simpatia, reza e feitiço.

a cobra veio.
cobrar o preço da culpa.
mas eu não temi.
nem fugi.
olhei nos olhos dela e reconheci:
sim, é minha.
me morde. pode matar.

painho me alertou.
gritou de longe como quem ainda quer salvar o que sobrou.
matou a cobra, jogou no rio,
mas ela permaneceu viva em mim,
mesmo que as águas a tenham levado.

porque entre a ideia e a prática
mora uma contradição.
e nela eu moro também.

confia no tempo.
mas o tempo não tem casa fixa.
ora é remédio, ora é veneno.
ora cura, ora repete.
e tem dias que o tempo só observa, calado,
enquanto a gente se engole por dentro.

então deixa mal resolvido mesmo.
às vezes o que não resolve,
revela.