Porque agora ficou bizarro, né?
Tudo bem. Teve sentimento, teve entrega.
Mas é isso, sou eu, né?
"Ócio significa não fazer nada, e vem do latim otiu. Ócio representa, por exemplo, uma folga, um momento de contemplação, um descanso despropositado." Nesses raros momentos de abstração as ideias brotam de uma forma linda, inusitada, mas também, às vezes, destruidora, corrosiva.
Lembrei de uma história massa que vovô me contou tantos anos atrás.
Ele morou a vida inteira em Olinda, com breves momentos longe do ninho a despeito da própria vontade. Ele amava Olinda. Que eu também amo.
Na orla da vida que eu comecei a viver as praias são repartidas por espigões de pedra, colocados há muitos anos para tentar conter o avanço das marés. Entre cada espigão uma praia diminuta, uma faixinha de areia entre as rochas enormes.
Pra descer da altura da beira-mar para a areia, escadarias. Quando era pirraia lembro que eram escadas de pedra encrustada no paredão que sustentava a cidade, mas já há muito tempo são degraus de madeira.
Mas do que é feita não é importante. O que importa é que as escadas levam da cidade à praia, e da praia ao mar. E o mar é o mesmo. A maré alta engole os degraus levando direto para o fundo, desaparecendo nas ondas espumadas.
Vovô contava que, com uma pedra pesada nas mãos, seguia em frente, adentro e avante cruzando abaixo da linha do horizonte. O peso da pedra o mantinha no fundo, onde caminhava como em solo lunar — prendendo a respiração e de olhos fechados para não ver os tubarões, dizia ele.
Depois de quase um momento inteiro, quando não aguentava mais segurar, vovô soltava a pedra e emergia. Dava uma lufada de ar e remava de volta. Chegava em terra firme sorridente com a aventura no mar.
Minha família tem em si um monte de analogias com o mar, mesmo que fechem os olhos e prendam a respiração. Mainha via no mar um convite indecifrável. Dizia que em noite de lua cheia se acendia um caminho prateado que convidava pro fundo do mar, mas louco é quem se aventurava. Talvez vovô fosse maluco mesmo.
Entendi que pra tocar o fundo, é preciso escolher o peso certo. E depois, saber a hora de soltar. E, mesmo de olhos fechados e o pulmão ardendo, confiar no retorno. A maior herança que vovô me deixou: coragem para a loucura e liberdade para o mar.
é preciso quebrar esse ciclo.
travar na vida blindado, armado, certeiro. em algum momento, a armadura falhar. e, então, sofrer profundamente. não ofereceu movimento nem proteção. ego destruído. voltar a acessar o cosmos pela dor. só na dor o acesso se abre?
destruir o ego. catálise. antigo ritual. tecnologia já conhecida.
respirar organicamente. correr mecatronicamente. abrir a consciência por vias não lineares, através das retinas oculares, papilas gustativas, alvéolos pulmonares ou veias sanguíneas. a fórmula é ancestral. não falha.
a gente já conhece a tecnologia da destruição de ego. eu já sabia o que fazer desde sempre. como sempre. resisto ao movimento e quando cedo é tarde. dessa vez demorou.
mas chegou. com olhos, ouvidos, mãos, língua, nariz. sentindo tudo e processando no cerebelo. tudo funcional. inclusive na potência máxima. acessado.
qual o protocolo pra manter esse acesso? presença é remédio.
presentemente.
Que é que eu posso fazer se tu é poesia inteira do começo ao fim, do fim ao começo? No futuro, no presente e no pretérito imperfeito.
Lendo cartas imprecisas, displicentemente, como eu mesmo havia alertado. Faça o que eu digo mas não faça o que eu faço. Pra se fuder.
Não largo o osso, mesmo com tantos abutres que só pensam em me comer. Mas vamos vencer.
O que eu posso fazer? A tua escolha, uma releitura sutil do próprio chamado — charmosa, simples e perfeita. O triângulo é a minha forma favorita. Três pontos que se equilibram eternamente.
Os olhos são a janela da alma, espelho para o universo, se ver de perto galáxias, nebulosas e todos os pilares da terra estão lá. Mesmo que não enxerguem o tempo todo, há todo tempo vértices para o infinito.
Decifrar a vida por vias neurais invertidas, processadas organicamente, de forma singular. A gente vê o que a gente é. Uma combinação de códigos caótica de forma que cada leitura é única. Babilônia burns.
Decifrar a vida via tecnologia cultural. Ler com cada bastonete os cantos mais escuros, com cada cone as cores mais quentes. Ler no pretérito imperfeito uma escrita que ama o que fere e vice-versa.
Era uma festa, ou algo assim. Um espaço amplo, tinha rio, mata e estradas de terra batida. Eu via a lua alta no céu. Sentia presenças conhecidas circulando, mesmo sem vê-las, nossos corpos não se tocavam, mas sabíamos da presença um do outro. Tantas outras pessoas também apareciam de canto de olho. O tempo começou a nublar.
Prestes a precipitar, o sol se insinuou por um segundo, familiar demais pra causar surpresa, breve demais pra me aquecer. Tentei capturar, mas desapareceu no contorno das nuvens, tão rápido quanto surgiu.
Começou a chover. Tive que sair dali. E nesse deslocamento pequeno, me perdi de todos. A lua desapareceu também. Fiquei guardando umas coisas nas mãos.
De repente, fui levado para fora e para longe. Tentei resistir, mas me sentia quebrado, distorcido, lento. Quando finalmente funcionei, percebi que a chuva havia passado, mas nem sinal da lua. Trevas no céu e na mente. Não lembrava o nome de ninguém. Nenhum nome.
A estrada seguia pra fora, e eu ia junto, arrastado nem sei pelo o que, com o peito embargado e os dedos apertando objetos que me foram deixados. Me pus a voltar. Mas minhas pernas estavam pesadas, como se cada passo afundasse em areia movediça, pesada, pegajosa. Tentei correr, mas era impossível. Tudo se movia menos eu.
A estrada era de terra, flanqueada por cercas de arame farpado. De repente, o caminho foi barrado por uma pilha alta de bancos de madeira. Escalei. No topo, um homem apareceu e tentou me impedir. Disse que eu precisava voltar. Eu insisti. Precisava voltar. Mas não lembrava o nome do lugar. Nem ele sabia ao certo. Sugeriu um caminho alternativo, meio no chute.
Desci da pilha de bancos e entrei numa estrada lateral, também de terra. Tentei olhar um mapa, mas não conseguia me localizar. E isso me desesperava mais do que tudo. Eu sempre fui bom em me situar. Sempre. Mas agora lia cada traço, tateando no escuro, torcendo pra alguma coisa virar caminho.
Surgiram animais. Muitos. Entre eles, dois touros. Alguém gritou me alertando. Um dos touros me encarou e veio. Era estranho. Corpo de touro, mas os olhos pequenos demais, focinho de anta. Me fixou com os olhos e avançou. Segurei pelos chifres. E mesmo carregando um monte de coisa, consegui me soltar dele. Pulei uma cerca que, felizmente, não era farpada.
Caí à margem de um rio. Fui andando, os pés afundando na areia úmida. Mais adiante, encontrei pessoas. Perguntei sobre o lugar onde queria voltar. Um homem com microfone, desses de locutor de rádio, me perguntou se o nome do lugar era apelo.
Não era. Respondi com um cansaço seco: "Não, não é esse o nome."
Segui mais um pouco, mais devagar ainda, como se o sonho tivesse areia dentro. Acordei frustrado, ofegante. Sentia que tinha deixado algo pelo caminho, mas não sabia exatamente o quê. Ou quem.
Hoje não resta mais ninguém a não ser a ausência.
Cabelo, sorriso, olhos, nariz, jóias anodizadas, braços, riscos, pernas, barriga, corpo inteiro ausente. Presente nos pensamentos, rastro cromático, performance delirante. Fecho os olhos e sinto... Na verdade, não sinto mais teu cheiro. Tô tentando lembrar, mas não consigo mais. Escuto tua voz em ecos eletrônicos. Mas não a reconheço, essa voz nunca mais falou comigo. Vejo teu rosto piscando na tela. Mas a carne viva tá se perdendo.
O amor tava lá. Talvez mais silêncio do que palavra, mais gesto desajeitado do que coreografado. Talvez só tenha se revelado inteiro quando já era ausência. Malfeito, não dito, mal falado. Mas era amor. Era amor pra caralho. Tava lá. Gravado com tempo, tensão e energia. Anodizado.
Depois da partida o amor que tava malfeito, não dito e mal falado, transbordou, gritou e explodiu. Boom. Eu tava com a granada nas mãos. Dilaceradas tentando reunir os cacos. Tentando segurar um corpo com outro corpo inteiro. Mas é impossível segurar qualquer coisa. Nem o pensamento. Apesar de no momento bem sucedido, mesmo meus pensamentos insistentes falharão.
Meu livre-arbítrio falhará. Vai chegar o dia. E eu estarei lá. Refeito. Um tipo novo de inteiro, reprogramado depois do colapso. Ainda pisca na retina, às vezes. Anodizado em excesso. Agora a liga tá se soltando. O brilho metálico virou fosco. A superfície descasca em tons opacos. A cor viva que pulsava como interface de vida virou um erro de programação.
Me vi diante de um portão de ferro bem alto, desses que as barras dançam criando padrões quase fractais. Testei e tava aberto, se escancarrou sem rangido. Era a entrada de um jardim. Entrei com um livro na mão e atravessei sentindo a grama sob os pés, rodeado de verde, amarelo, vermelho, rosa, violeta, anil e uma cor que não sei o nome, mas que é a mais bonita de todas, quase um laranja neon.
Parei de observar as flores e me peguei lendo, me deliciando em cada página, sem parar de caminhar. As palavras saltavam das páginas falando comigo, eu lia sem saber se entendia. Às vezes achava que era poesia, às vezes parecia aviso. Estou ciente, quero continuar.
Tentando não tropeçar, fui andando em círculos, ouvindo cantos de pássaros distantes. Voltei ao portão de fractais, ainda escancarrado. Mas tava tão distante que nem me dei conta quando atravessei pra fora. Eu, com o livro nas mãos, mas o olhar distante, lia sem entender direito a história, me distraí.
Pulei uma página por ansiedade e agora tô tentando retroceder, buscando uma frase que fizesse sentido, uma frase que perdi, mas que muda todo o enredo. Já li e reli tudo. Quando achei, já não fazia mais sentido. Nem a frase, nem a palavra, nem a letra. Só então percebi que as cores em volta, ora quentes, estão cinzas.
O livro que levei nas mãos o tempo todo, só se revelou no fim. As páginas que pulei eram as que explicavam tudo. Estavam ali, quietas, carregando o sentido escondido sob camadas de insegurança e ruído. Só compreendi a profundidade quando já era tarde, quando os alicerces haviam virado escombro. Desabou, alto demais pra não fazer estrago.
Lembro bem do momento em que pulei as páginas. Só não sei quantas vezes retornei. Já li tudo, só falta acreditar que o portão de fractais agora range, emperra, não abre mais. Está trancado. Sem voltar pra você eu não descanso. Minha casa é você e eu já sabia.
Acordo cedo pra começar a vida logo. Se não te encontro depois do trabalho vou logo dormir porque a vida já acabou. Eu ainda tô aqui. Penso em tu uma vez todo dia. Desde a hora que acordo até antes de dormir. Também tô com cãibra no peito todo dia. Foda que meu sono tava até bom, mas hoje eu acordei às 3:33 e não consegui voltar. Tive que gravar umas palavras pra não esquecer depois.
Tô pensando em mil formas de fazer essas palavras te alcançarem apesar dos bloqueios metafísicos. Toda hora ponderando se você quer receber, se você tá bem, se vai ficar mal, se não quer me ver nem pintado de ouro. Nem ouvir o que eu tenho a dizer.
Ainda guardo comigo as pedras que tu me deu, as vezes no bolso, as vezes do lado esquerdo do peito - depende da camisa que eu tô usando. No início era pra proteção, hoje carrego como se fosse tu.
Eu tô me iludindo todos os dias por sinais, algoritmos, vieses de confirmação, ecos da minha própria mente. Insistindo numa realidade que não existe. Tô correndo na sua direção e me afastando cada vez mais. E hoje nem isso. Faz tempo que nem isso. Amanhã, uma semana que nem isso.