A dor vem menor, e vai embora mais rápido.
Mas o desejo, ainda tá aqui.
Te confesso que quase não quero mais.
"Ócio significa não fazer nada, e vem do latim otiu. Ócio representa, por exemplo, uma folga, um momento de contemplação, um descanso despropositado." Nesses raros momentos de abstração as ideias brotam de uma forma linda, inusitada, mas também, às vezes, destruidora, corrosiva.
Ato I - Prólogo em cólera menor
Vamos exercitar um negócio aqui: seria cólera criativa o oposto complementar do ócio corrosivo? Não sei, mas tem duas luas cheias em que o sentimento está transbordando em letras, palavras, frases, parágrafos, ora versos, ora cantados, ora poético, ora apenas descritivo, ora direto, ora subjetivo, ora escondido, ora muito revelado, ora querendo dizer, ora apenas querendo ser escutado.
Ato II - Lar, ou a cena do encurralado
Encurralado onde deveria ser lar.
Ainda vejo cores quentes, vermelho, rubro, mas também negro, opaco.
Dá pra ouvir o sorriso de uma criança e, ao mesmo tempo, ecos de um passado distante e velho.
Quase carcomido mas que ainda guardo com carinho. Não sei por que não me desfiz ainda dessas lembranças, desses registros... Físicos. No início era pra mostrar para a pessoa que partiu o que eu ainda guardava. Depois, se transformou mais ou menos numa prece, numa reverberação, uma tentativa de reverberação no tempo e no espaço daquelas lembranças, daquelas memórias, daqueles acontecimentos. Como se esse gesto-ritual, fosse fazer acontecer de novo.
Ato III - A memória encena o medo
Depois, talvez tenha sido o medo.
O medo de esquecer o cheiro, o som, os gestos, os dias divididos, as memórias boas e ruins, os planos concretizados e abortados. Medo de esquecer e pelo esquecimento, essas memórias, essas lembranças se tornassem menos reais, menos verdadeiras. Porque a pessoa com quem você viveu essas... Essas aventuras, não está mais do seu lado pra dizer "bote fé, foi desse jeito. E digo mais!".
Ato IV - Epílogo da caixa de lembranças
Não vai dizer mais nada. Não vai mais dizer nada, vai só deixar um vázio mudo, sem som, nem cheiro. Só fotografias coladas numa caixa aos poucos sendo desgastada pelo tempo. Maio, Junho, Janeiro, Fevereiro. Os meses abençoados vão se sucedendo. E o que resta é a honra, a missão de honrar e de manter vivo tudo que passou. Com amor, carinho, saudade, com vida vivida e com vida para se viver. Enquanto houver vida. É isso.
to me vendo passando na cozinha, sem propósito. era uma rua estreita e sem saída, só tinha uma janelinha pra circular o ar. aquela meia luz de sempre: amarela, calma, quente.
era pra ficar mais perto dela. tipo a dança dos planetas em torno do sol. tem uma atração gravitacional que puxa. pra perto, pra dentro, pro fundo e pro alto.
três letras que não posso mais juntar. só de brincadeira agora. tipo, como se ninguém tivesse percebendo o óbvio, o ululante. como se eu mesmo não quisesse apontar exatamente o parágrafo, a frase, a palavra e as três letras. e fingir que era pretérito imperfeito. e dizer "massa, né?". ou não?
ela lá fazendo alguma alquimia. o olhar focado, as mãos habilidosas, o pé direito apoaido na coxa esquerda. passei atrás, alguma conversa onde a gente testava os limites da razão, o que a gente acreditava, moldava, encaixava, criava. passei por atração, fiquei por decisão. e parei bem atrás.
o tempo, então, parou também. a cozinha evaporou. era só pele, cheiro e o som quase elétrico da presença. a respiração parecia uma corrente de ar vindo de longe. isso tudo vendo de olhos fechados — não, estavam abertos, em todos os ângulos, flutuando. ficou confuso, mas era certo. eu que quase sempre paro tudo pra te ver passar, tava parado bem atrás de você. te abracei, casa em carne viva, nossos corpos buscando um ao outro. te sussurei algo que mudou tudo. quero morar em você.
quero te mostrar umas coisas. coisas que fui guardando. tem coisas que lembrei de você por engano, outras que me lembraram você antes mesmo de eu terminar de ver. algumas, confesso, eu forcei. qualquer coisa virava você.
a lista virou uma coreografia dançando com o tempo. um filme velho, não daqueles que eu te mostrei e depois pedi desculpas, mas um bom filme. aquele set que começa no caos, navega outros universos e, por fim, pousa suave em silêncio pleno.
fui guardando. com método, mas sem plano. aquela vontade meio despropositada de construir bancos de dados. de qualquer coisa que ecoasse. guardei porque sim.
porque quero te mostrar o cinema pernambucano, porque o filme é vintage, e porque não aguento mais mostrar filme ruim pra tu.
porque quero mostrar pra você a síntese dessa discussão sobre ciborguismo, cyberpunk e pós-humanismo.
porque quero te mostrar esse ensaio que fala de sonho e de uso de psicodélicos pra cura.
porque acho que tu vai gostar.
porque não mostrei antes, e agora parece tarde, mas ainda assim, quero.
porque quero te mostrar que o brega cura onde dói.
porque esse brega então, esqueça tudo.
porque quero te mostrar essa série distópica.
porque quero mostrar onde o rap encontra com o brega.
porque o brega também dói onde cura, rs.
porque, véi, aqui eu já tava numa energia de foda-se, qualquer coisa tava me lembrando você.
porque aqui é um set finíssimo, acelerado e noturno. a tua cara.
porque esse aqui me pegou daquele jeito: mil lembranças, mil ressonâncias, todas belamente dilacerantes.
porque esse outro set é muito brabo, mais voltado pro prog, pro som diurno, mas fino, você vai gostar.
porque esse aqui me surpreendeu pra caralho! começa acelerado, muito noturno, e termina meio introspectivo e progressivo. esse aqui é creme de la creme. nada mais digno de você.
porque lembrei de você. essa aqui inclusive eu me esforcei, queria que fosse perfeita.
porque essa aqui são vidas passadas, presentes e pretéritos imperfeitos.
porque laia.
porque, nossa, essa aqui é você toda. não tem quase nada meu aqui.
porque é arte com traços, desenho e processo.
porque aqui foi a cura, viu? aqui me pegou daquele jeito e eu só agradeci.
porque melancolia.
porque aqui é você toda. tem muito de mim também. muito, muito. mas é você, sem dúvida.
porque mesmo quando era sobre mim, era você que eu queria que visse.
to ficando repetitivo.
Obrigado por esperar. Acordei num instante onde tinha feito tudo diferente. O gesto certo, o tempo certo, as palavras exatas. Senti o calor do abraço depois de muito tempo fora, vi os olhos fecharem em paz. Fica aqui.
Tudo ficou num tom azul-turquesa com raios de luz pulsantes, ora vermelha-neon, ora amarelo-elétrico. Quando os olhos se abriram li tudo caleidoscópico. Lia, mordendo os lábios, dentes cintilando turquesa-neon, seus olhos antes tão vivos, que me atravessavam, agora opacos, sem direção.
Eu me joguei adiante, estiquei os braços o máximo possível, tentando segurar o sol, mas te vi no horizonte desaparecer. Ficou ressoando "obrigado por esperar". Delirante.
Acordei em outro instante, no escuro. O quarto, cinzas. A cidade, fria. O braço ardendo em tons pretos. Fica aqui.
Não to aguentando mais. Tenho que soltar. Eu quero soltar. Engulo seco. Mas quero. Porque não dá mais. Tá doendo, já paralisado. Apavorado, trêmulo.
Não tem o que fazer.
O que tem que fazer é o que tem que ser feito.
Dormir. Comer. Trabalhar. Economizar tempo e energia. Treinar, correr, pedalar. Ir pra praia no final de semana. Ficar em silêncio. Ler. Ler pra lembrar. Conhecer pessoas, fazer amigos. Falar, ouvir. Ouvir, ouvir.
Ver, ler, escrever. Ler pra esquecer. Esquecer pra lembrar. Viajar, conhecer lugares novos, se desafiar. Morrer e nascer de novo. Fazer vidas felizes. Permitir entristecer. Encerrar. Começar. Amar. Ler e ler o mundo.
Dar, receber, cuidar. Oferecer, agradecer e amar. Ler. Ler a si. Tomar banho de rio. Ir pra longe, voltar pra perto. Honrar os encontros, lamentar as despedidas. Contar histórias, ouvir fantasias. Desejar, se despedir, suprir. Compartilhar, descobrir, compreender, perdoar. Confiar, insistir, respeitar. Ler. Ler o que nunca foi dito.
Acertar. Errar. Ser humano. Ler. Ler e reler. Ler todos os sinais. Ler os dias. Ler os gestos, os desvios, as pausas. Ler até que tudo faça sentido ou até não fazer nunca mais. Ler o passado, o presente e o futuro. Ler no pretérito imperfeito. Ler e decifrar. Ler e, finalmente, soltar. Saltar.
Acordei como fui dormir. Igual aos últimos 30 dias e noites. Parecia que eu ia reunir nas galáxias, depois da supernova. Ao lado do buraco negro, num céu de uma estrela só.
Não sei o que vim fazer aqui. Minhas mãos simplesmente abriram as portas e meus pés caminharam. Eu perguntei se deveria sair e recebi uma resposta dúbia. Pensei se seria necessário, perguntei o que poderia fazer. Inconcluso.
Saí sem rumo, mas com os passos quase milimetricamente definidos. Pra mais perto, sempre. Adiante. Sem preparo pra nada, mas esperando tudo. Pior dos cenários. Desilusão.
Tô há muitos dias revivendo o mesmo dia. A barreira implacável que se levantou com poucas palavras, o cristal delicado de confiança que foi despedaçado estupidamente. Ditos e não-ditos, despejados numa turbina que triturava tudo. Eu e você, e o mundo. Ruído, moído e despedaçado.
Correria. Desespero. Morte.
A lua estava prestes a se encher de veneno. Subterrâneo, visceral, alquímico, letal. Cada raio de luz era uma agulha tatuando fundo na pele tudo que não foi falado esse tempo todo. Depois, tudo foi minguando. Primeiro as palavras, depois o calor. Veio o silêncio frio, úmido e desolador de quem está na tempestade no meio da rua alagada. Tudo escorrendo, invisível, irreversível. Afogando aos poucos quem não teve onde se abrigar.
Depois, céu escuro. Sem pergunta, nem resposta. Quase apagado depois de me consumir inteiro. A última brasa, ainda insistente, soterrada por tanta cinza. Só silêncio e a lembrança do brilho que já foi. Me confundi com a noite no meio de um mar de estrelas. Ou seria um deserto de grãos de areia? No horizonte de eventos a ordem cai em devaneios e se curva ao caos.
Crescendo, a maré anunciava um novo ciclo. Aos poucos, a onda que queria me afogar me colocou na pista. Presente. Bruxuleante. Os gestos tortos, arados, desajeitados. Vivo. Via valor no processo, mesmo afiado a promessas. Não romantize o caos, celebrai-o.
Então, tô aqui novamente no parque de diversões dos corações partidos. Tentando pôr ordem no caos. Varrendo cacos de vidro com as mãos dilaceradas, sujas de sangue. Limpando minha fronte, enxugando minha tez. Pintando tudo de bordô. Um rio vermelho de sangue em cada dedo. Muito tarde pra pedir desculpas. Muito tarde pra dizer que te amo. Muito tarde para reencenarmos essa peça. Muito tarde pra tentar outra rodada nesse jogo de azar.
Um brilho eterno de uma mente sem lembranças assim que eu abrir qualquer feed ou pesquisar e ler no pretérito mais que imperfeito. Pra lembrar não basta guardar, o usuário pode não ser encontrado. Tem que criar seu próprio processo antes, seu próprio sistema.
Sistema-lógico-afetivo. Tem razão na emoção? Acho que talvez um caminho onde a gente escolhe o que enfatizar e enraizar, e o que esquecer e sumir. Pra sobreviver sem se perder. Confia no processo. Confia no sistema-lógico-afetivo que você estabeleceu pra si. É preciso estar atento e forte afinal.
Atento ao processo, atento ao sistema, atento aos seus fundamentos. Porque a técnica não é isenta, nem neutra. Podemos nos apropriar de qualquer instrumento se pá, mas no mínimo atentos aos seus fundamentos e objetivos de criação.
E forte pra segurar essa onda e não se afogar. Forte pra (se)construir, (se)destruir, (se)reconstruir. Porque o que não muda é que tudo muda, então vários cenários imprevisíveis. O previsível é onde você escolhe agir, mas sem expectativas.
A parte do lógico pode ficar à cargo do próprio sistema. A parte do afetivo tem que ter criação, criatividade, ousadia, presença e arte. Arte como ato livre de se revelar e se preservar. Tem que ser seu, mesmo que não saiba pra onde. Faz isso. E confia no processo. Insiste com dignidade o seu próprio processo. É uma questão de crença também. Faz parte dessa tecnologia.
E se o corpo é máquina viva, a mente é seu banco de dados. É preciso indexar, porque são muitas linhas. Nem brilho eterno, nem sem lembranças. Estão lá, guardadas com nome, cheiro, som e arte. A arte que transforma lembrança em linguagem, indexação afetiva. Atravessando, traduzindo e honrando a nossa história. Enfim livre.
Com arte, finalmente, bem indexadas no seu sistema-lógico-afetivo. Pra acessar quando quiser. Pra deixar em paz quando não puder. Pode descansar e soltar. E, ao fechar os olhos, quando a saudade for te procurar, não importa a hora nem lugar, escuta e deixa ir.
Tem cartas que não foram feitas para chegar. São escritas como se fossem bilhetes esquecidos ao vento, rabiscos deixados na mesa da alma para que o tempo leve — ou ao menos alivie.
Hoje escrevo uma dessas.
Escrevo mesmo sabendo que não vai ler. Mesmo sabendo que talvez não queira, talvez não devesse. Mas escrevo. Porque precisei encontrar uma forma de me despedir. A palavra, mesmo muda, ainda é a minha maneira de tocar sem invadir.
Escrevo da saudade do que parecia pequeno: a respiração funda quando o mundo pesava, o murmúrio quase inaudível, a cabeça que caía nos ombros quando a tristeza pousava sem pedir licença. Coisas que ninguém mais notava, mas que pra mim diziam tudo.
O olhar dela profundo que me atravessou desde o primeiro dia. Esse olhar, que um dia me enxergou, agora me foge. E talvez seja justo. Talvez seja assim que os finais acontecem: sem escândalo, só silêncio.
O que vivemos. Disfarçado, adiado, remendado. Foi o mais intenso. Curioso como só se tornou claro no fim, quando a palavra já era sombra.
Sinto muito por precisar escrever isso. Por não ter conseguido dizer antes. Por ainda estar aqui, sem estar mais.
Eu sigo com a saudade — do cheiro, do som, do toque, da palavra, do silêncio, da presença e da ausência.
Isso é o que restou: uma crônica para ninguém. Ou, talvez, uma forma de existir um pouco além da dor.
E então, com delicadeza, encerro.
Sem resposta, sem retorno.
Só um suspiro.
E um adeus.