terça-feira, 30 de setembro de 2025

espiritualidade pragmática #2

eu lia mais do que escrevia
esperando o mundo falar primeiro
e só depois arriscar a própria voz

coincidência
truque de apagar a autoria dos acontecimentos
como se o acaso fosse inocente
e não apenas um véu
sobre a mão invisível das escolhas

a gente se encontrou
porque andava na mesma direção
os passos, por instantes
tinham o mesmo compasso
mas depois, como rios caudalosos
tomamos margens distintas
e a distância se fez correnteza

escolho o acaso e invento o destino
me conecto pela fala
testo, roço, atravesso
até encontrar confluência
quando encontro
arrodeio o território familiar
e celebro a diferença
como quem transforma fratura em fractal
divergência em diversidade

no fim, é preciso saber a hora parar de escrever
ainda sigo lendo
nos olhos, nas pausas
nos silêncios que também são texto

até breve

tem uma rainha-sereia em itamaracá
dançando entre a despedida e o encontro
canta que toda partida é promessa
quero morar contigo entre as carmelitas
ter uma cria de sóis e girassóis
viver entre o amaro branco e o rio doce
fazendo oferenda no pontal de maria farinha
onde as águas se confundem
doce se torna sal, sal vira reza
o movimento é eterno

ontem é cicatriz,
amanhã, um mistério escondido no mangue
e o hoje, chama breve
arde em nossas mãos como oferenda

o nome dela é o mais bonito do sistema solar

fui atravessado pelo meu bem
punhal no meio do peito
coração que virou bainha
segurei pela empunhadura
e enterrei mais fundo
me afogando no rio vermelho

a dor se fez centro do universo
não há como sair são e salvo
o mais grave é que o sol insiste em nascer
a visão do paraíso num mundo distante

o mais grave é que tudo foi legítimo
houve justiça em cada gesto
sem teatro, sem disfarce
o ressentimento não será fuga
a lâmina não apagou a chama
arde mesmo sem combustível

o amor, a verdade e o sentir
seguem sendo o único caminho
mesmo que queimem como fogo
mesmo que iluminem até a cegueira

ainda bem
hoje está chovendo copiosamente

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

não se perder nos sinais

é preciso estar atento e forte
atento e presente
atento e consciente
não deixar escapar os sinais
mas não se perder neles

lembrar a importancia dos rituais
das pausas, do ócio, do silêncio
a vida acontece entre uma coisa e outra
o espetáculo é o clímax
mas o processo é a vida

ritual marca o compasso da existência
ancora no real, abre portais
é tecnologia ancestral
transmuta, cria e conecta
abre caminhos

reneguemos a máquina que nos devora o tempo
produção sem pele e sem alma
desarticulada de propósito
é o único jeito de não se perder nos sinais
eles estão aí e tem um monte de coisa pra dizer

desacelera, apaga a lâmpada
respira, acende uma vela
silencia, cuida da carne que veste
ama, mesmo que o amor não volte
pois cada gesto é passagem
e cada passagem é renascimento

domingo, 28 de setembro de 2025

manifesto sináptico insurgente

toda revolução é impossível
até que se torne inevitável
feito rio que um dia está seco
mas no outro vira cachoeira

às vezes penso que cada sinapse
é uma tentativa de insurreição
um clarão breve que ilumina as curvas da vida
antes que a escuridão retome seu posto
e lembre do coração estilhaçado

não espero pelo futuro
nem aguardo resposta divina
esperançar é um trabalho ativo
uma artesania dos afetos que nos atravessam
junto os cacos de amor e verdade
até que formem um vitral colorido

honra e dignidade perdidas
se recuperam no corpo que teima em continuar
pelas cicatrizes que se tornam caminhos
na ferida que
 encarada de frente
abre passagem para a cura

sou um revolucionário com as veias abertas
já deixei meu sangue escorrer abundante
agora é preciso renovar o fluxo
não vazar, mas transbordar em direção ao mar

pedestal é prisão, controle e disfarce
por isso te tirei daí
pra que possamos olhar um ao outro
sem medo de cair de tão alto
na igualdade da terra molhada
na lama fértil do que somos

não culpar quem nos feriu
mas olhar o que sangra em nós
tocar com os dedos sujos de vida
a cicatriz ainda aberta
e ali encontrar a chave
para o recomeço

eu quero ficar
e fazer revolução com você

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

gangorra

uma noite fria, serenava
num pequeno parque de diversões
com uma gangorra solitária
sob a luz branca, fria
do poste de um jardim gramado e úmido

entre abacateiro, pitangueiras, coqueiros
um coro vegetal murmurando segredos pra quem quer ouvir

três cadeiras, lado a lado
sentei-me no centro
trouxe a da direita para frente
nela apoiei os pés

então, veio uma névoa já conhecida
densa, suspensa, quase sólida
se acumulou em camadas

quando dissipou, olhei à esquerda
a cadeira vazia ao meu lado
me pesava mais que o próprio corpo

à quase mil quilômetros
estava ali, ausente
o ar imóvel
e o frio da noite



quinta-feira, 25 de setembro de 2025

alquimia da chacota

dentre as coisas que me formaram
como gente e como bicho
aquilo que mais amo
é o ensimesmamento caricato-performático,
essa encenação de si mesmo
que a gente assume com solenidade lúdica

o pernambucano, sobretudo o recifense
ama florear suas próprias raizes
e nisso há grande valor
é parte do que nos faz grandes

a crença é tecnologia de ponta
pra que o improvável aconteça
o que começa em chacota
a gente transforma em realidade
deixa de ser brincadeira
pra virar brincante

qualquer coisa de fora
é apenas o reflexo da nossa coisa neles
tudo é em função da gente
como tem que ser

isso não diminui o outro
é só sinceridade
desde o primeiro momento
somos nossa própria referência
a gente convida o outro a conhecer
e se apresentar profundamente

o mangue é tudo isso
um amálgama orgânico, alquímico
capaz de vida
capaz de parir mundos da lama
onde tudo se mistura
transforma chacota em mito
e mito em realidade cotidiana
a gente se encontra lá

abismado

uma jornada interminável
gravada para sempre no cerebelo
quando tudo passa, você se dá conta
que mal olhou pela janela

segurando as pontas
equilibrando pratos
todo dia impedindo a catástrofe
que teima ser inevitável

as armas foram erguidas
as chaves, segredos abriram
as lentes fizeram convergir luz e sombra
nada neutro, nada sem culpa

todos os caminhos culminaram neste altar
soturno, gélido e mudo
muito sentir obstrui a razão
muita razão calcifica o sentir
por amor, não quero troca

encontrei-a deitada sobre o altar
imóvel, fria, sem vida
veneno derramando dos lábios
nas mãos, um frasco com meu nome
ainda cheio de morte líquida

poderia ter ficado de vigília
velado o corpo com a honra de quem espera
mas a dor foi maior do que o sinal
e fechei a porta do meu próprio corpo

morri duas vezes
a primeira, em silêncio, olhei o abismo
morte morrida
a segunda, um eco, o abismo me devolveu o olhar
morte matada

terça-feira, 23 de setembro de 2025

epicentro das linhas sísmicas

não peço retorno
que minha presença me baste
se for pra ser, que seja estrela
e não eco

que venha a cura
em forma de incêndio ou rio
que venha o amor
loucura que bagunça o juízo
que venha a felicidade
mesmo que doa sua chegada

o universo silencia
e dentro de mim, o murmúrio persiste
há linhas de destino que tremem
há vontades que se desdobram
há escolhas que ardem no peito
brasas quietas, escondidas

me escolhe, acaso
ou me condena à liberdade
me protege, acaso
ou me deixa nu

eu também sei cuidar
mesmo com mãos ensanguentadas
sei ofertar presença
mesmo na ausência
sei acender lampejos
pra adiar o fim

se for pra ser, será
se não for, libera

pois há uma fenda no tempo
onde a vontade é soberana
onde o desejo escreve em fogo

que assim seja

segunda-feira, 22 de setembro de 2025

kombucha, fumaça e mágoas para acordar

são três da manhã
estávamos surpreedentemente juntos
uma fissura se abriu no espaço-tempo
e despertei do teu lado

pisquei o olho
te toquei de leve
tu tava quente
de leve
reagiu ao meu toque
fui lavar o rosto
pra ter certeza

quando voltei
não só era verdade
como tu tava acordada
mas logo a fissura se fechou
tu tava aqui
mas eu já não tava presente

trezentos minutos intermináveis depois
a luz atravessava as cortinas
nossos olhos pesados
cansaço que prende o peito

eu só queria ser teu
tu queria só
não lembro mais
depois de tanta querência
tu foi embora

abri uma kombucha
amarga que acalma
acendi um cigarro
doce que acabrunha
chorei minhas pitangas
esse suco precisa de açúcar

domingo, 21 de setembro de 2025

o paradoxo da ruína

põe ordem no caos
mas se afasta do real
a razão acontece na mente
o real vibra no corpo

erguem-se pilares da razão
diante deles
em um ato de fé
é preciso ceder
ao murmúrio dos sentidos
à vertigem do instante
ao que se esconde nas frestas
da racionalidade

pilares pra sustentar
e ter onde pisar 
mas não lamentar
ao caminhar sobre ruínas
aprender a trilhar
entre abismos

mergulhar em cada buraco
descer aos cantos mais íntimos
despindo peça por peça
até que o medo se dissolva
e do corpo surja
um poder secreto
ardendo como verdade

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

sangria dourada

durante quase um ano
por todos os poros
tu me fez curar
metade de uma vida

ainda quero acreditar que é
mas quero ainda mais acreditar
que, se for pra ser, será

no horizonte
um brilho intenso
tudo alvo, tudo em excesso
ver demais também é
uma forma de cegueira
transe hipnótico
lisérgico, catártico

o encontro de midas e medusa
pode ser breve, fatal
mas também pode reinventar o sentido
recompor a cerâmica quebrada
soldar com fogo as rachaduras

e nas frestas do que partiu
o ouro escorre cintilando
revelando a beleza da falha
ferida que transmuta em mapa
caminho pra outra vida nascer

que seja inteiro, mesmo partido
que brilhe, mesmo pelas cicatrizes
é no que se quebra
que o infinito encontra forma
e nos devolve ao tempo
renovados, fragmentados, inteiros

terça-feira, 16 de setembro de 2025

diamantes, lágrimas e rostos para lapidar, sublimar e revelar, respectivamente

todo dia vai ser uma tortura
até que não seja mais.

hoje de manhã acordei
e durei dois instantes.
limpos,
feito diamante.
sem pensar em tu.

envolto num sonho qualquer,
um lugar estrangeiro de sentido.
na investigação, lembrei.
tu não tá mais aqui.
lá estava o tópico, imóvel, insistente.

o hiperfoco voltou.
saudade montando guarda.
tristeza sentinela.
parece que só é digno sofrer.

ontem notei que não chorava tua partida;
ensaiava a expressão no rosto.
dor, insatisfação, desconforto.
proibido trocar a máscara da tragédia.
mas não havia lágrimas.
não havia mais nada.
secou.

quando menos esperei,
meu rosto foi torcido, rasgado
e me pus a chorar no meio da rua.
baixei a cabeça
todo esse pranto também não seria digno.
não restava nada que parecesse digno.
fiquei no limbo.
meu mundo não existe mais.

um dia talvez
acorde
e dure mais que dois instantes.
um dia
descansarei o rosto e os olhos,
e a dor será lição e não território.
por agora, ainda exploro o terreno
e decoro mapas na mente.

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

tem mas tá em falta

desliguei todos os estímulos
queria ficar só na minha presença
e mais uma vez
a inquietação

"é pra fazer o que agora?"

ponho um caderno na minha frente "escrever?"

recuso de início,
percorro com os olhos as bordas do quarto
baseado aceso entre os lábios

já risquei tantas tarefas da lista
mas nada me atravessa como vitória
tudo em suspenso

olho de novo
reconheço o entorno
cada objeto devolvendo seu contorno

mas tá faltando
tem mas tá em falta
escorreu entre os dedos da minha mão
água que foi feita pra fluir

virou traços, palavras, rabiscos
gritos abafados em folha verde
e tons pastéis que escondem excessos
tentativas tímidas de fé

"escrever e acreditar"

qué, fí

fermento por dentro.
microvidas conspiram em revoluções silenciosas,
nas minhas entranhas dançam assembleias invisíveis.
sou campo de cultivo,
mangue de transformação bioquímica,
um ecossistema em revolta doce e lenta.
comitê revolucionário visceral.

a digestão não é só quebra de moléculas,
é decomposição cultural.
cada célula epitelial do intestino
carrega mais decisão que qualquer algoritmo de vigilância.
sou permeável.
engulo o mundo, deixo ele me atravessar,
tecnologias entéricas que selecionam o que fica,
o que vira energia,
o que se dissolve em nada.

o intestino é meu segundo cérebro,
mais antigo, mais esperto.
ele não julga, só sente.
enquanto o cérebro pensa em palavras,
o intestino pensa em ácidos,
materna bactérias,
cultiva futuros possíveis,
engole o tempo e devolve vivo.

decompor estruturas rígidas,
dissolver categorias,
transformar o cru em algo digerível.
ser saudável, hoje,
é suportar ser invadido,
permitir que nos mastiguem,
nos processem,
nos integrem.
sou, sobretudo, poroso.

e se há um futuro,
ele começa no estômago,
onde o tempo não é cronológico,
mas químico,
um calendário de enzimas
marcando a história na língua.

sol em câncer

o amor é um fio de ventríloquo,
teia cósmica,
tecendo linhas que me puxam os dedos,
que me inclinam o rosto,
que ditam palavras que não reconhecia antes.
feito dobra de sangue,
eu me entreguei inteiro,
sem saber se era devoção ou feitiço.

o amor é também um fio de navalha.
caminhei no meinho,
um pé depois do outro,
equilibrando-me entre o tudo e o nada,
entre o beijo e o abismo.
mas tropecei para dentro
achando que era nos teus braços,
descobrindo tarde demais que eram teus pés.

por um fio,
quase acreditei na promessa de amar e ser amado.
agora resta o mangue, fértil e úmido,
cheio de criaturas que se alimentam dos restos do sonho.
cada raiz submersa guarda uma memória,
cada caranguejo cava o silêncio onde me escondo.

um chié corta o ar,
anunciando a maré que se aproxima.
não sei se ele chama a maré,
ou se a maré o chama.
sei apenas que ambos respondem,
como se o amor fosse sempre isso,
um eco de algo maior,
que nunca sabemos se nos pertence
ou se apenas nos atravessa.

sede da lüa

havia flores no jardim,
todas as cores possíveis,
quentes, vibrantes, quase incandescentes.

havia água adormecida nas sementes dos coqueiros,
rios inteiros escondidos em pequenas cápsulas,
escorrendo em direção ao mar,
abrindo caminhos invisíveis.

até que a lüa cheia rasgou o céu
revelando tudo que estava oculto.
a necessidade de tudo que não havia,
um cansaço antigo do ser.
a abundância virou deserto,
um esgotamento silencioso,
uma sede insaciável de paz.

em nome do amor,
as flores murcharam até virar cinza,
os coqueiros tombaram enfermos,
os rios perderam a voz,
não mais caminhos para canto nenhum.
e o mar permaneceu inalcançável,
miragem líquida no horizonte.

mas também por amor
é preciso semear de novo,
abrir sulcos na terra sedenta,
para que a água encontre passagem,
e o mar volte a ser destino,
não ilusão.

domingo, 14 de setembro de 2025

não pare

quando não souber o que fazer
corre.
se movimenta, desliza,
descola do chão que te prende,
atravessa portais invisíveis.

apaga a luz,
acende os olhos,
deixa o corpo ser guia da própria vertigem.

a cor é verde:
suco amargo de hortelã-pimenta,
adstringente que raspa a garganta
pra deixar passar.

não fica nada.
nem pensamento, nem saliva.
não serve chá:
serve grito, canto, palavra cuspida no papel.
deixa a espuma do instante acalmar.

quando sentir demais,
não procure razão pois não há.
quando a razão pesar demais,
não encontrará sentimento.

são pesos e contrapesos,
um pêndulo cego
tentando desenhar equilíbrio
num corpo que nunca para de oscilar.

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

murro em ponta de faca

pancada contundente com a mão fechada
cada nó atuando como pára-choque
mas é pele, carne e ossos
entre cada dedo vãos finos
por onde a lâmina pode se encaixar sem me machucar
painho me ensinou a colocar a mão espalmada na mesa
com os dedos bem abertos
e passear a ponta afiada pelos vãos
cada vez mais rápido
até que vire espetáculo
até que deixe de ser real
acho que consigo encaixar entre os dedos sem me machucar
depende da velocidade
quanto mais rápido mais imprevisível
a certeza na verdade é que não vai dar certo
mas eu me jogo mesmo assim
sempre fui inconsequente, teimoso ou determinado
depende se tu gosta de mim
mas eu gosto de tu
e aí sou isso tudo ao mesmo tempo
se der errado, deu
vai assim mesmo
levanto pra cair de novo
aprendi isso também
a gente espera o certo e lida com o errado
vai assim mesmo
o importante é não deixar de ir
mesmo sabendo que a mão pode sangrar
vir

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Umbigado

hoje demorei pra dormir,
negociando com a ansiedade em parcelas que não cabem no peito,
tentando remediar o vazio com listas de tarefas
que não se cumprem.

será que ler acalma?
ou escrever pra deixar escorrer a dor pelas letras?
talvez um chá de camomila, ou mulungu,
talvez fumar um chá,
ou deitar em posição de lótus
e inventar uma respiração capaz de se presentear.
lavar o rosto, fechar os olhos,
convencer o corpo a descansar.
mas não há resposta certa.
para o que não há remédio remediado está.

tô sentindo saudade dela.
tô sentindo falta dela.
tô sentindo ela indo embora.

indo.
no gerúndio.
flagrante da ação em curso,
um verbo que não se resolve,
que não chega ao ponto final.

aqui, agora, do meu lado,
ausência presente.
indo.
embora.

indo
embora,
não demora
a virar coisa rara.

o mundo foi com ela.

talvez seja porque
eu beijei o seu umbigo,
e nesse gesto mínimo
abriu-se uma fenda,
sem atalho
talhou meu coração.

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Desaniversário

quero que o dia acabe.
cada passo é só movimento sem alma,
matéria sem energia.

quero que a semana passe,
que o fim de semana também se dissolva
antes mesmo de começar.
os sonhos viraram poeira.

quero que os meses abençoados
me atravessem sem piedade,
queimar calendário após calendário
até que as estações percam o nome.
não sei mais diferenciar o frio da espera
do calor da esperança.

quero que o ano acabe.
meu aniversário já não tem data,
não há velas, nem bolo, nem voz alguma.
não há o que comemorar.

havia sentimento, isso ainda sei.
mas futuro?
não.
apenas um vazio iluminado,
onde o tempo se arrasta em sombra líquida.
tento decifrar se sobreviver
é esperança ou ilusão.

domingo, 7 de setembro de 2025

espiritualidade pragmática

disseco causas e efeitos
abrindo o corpo folheando páginas

mergulho em traumas e performances delirantes
com ferramentas que não são bisturis

procuro a fenda onde a armadura começa,
onde o ciborgue se refaz e se reproduz,
versão após versão,
cada gesto gravado em código de afeto e cicatriz

é algoritmo ou pulso elétrico?

se constrói no meio do colapso,
metade ferido, metade circuito
camadas, restos, próteses invisíveis

o controle é uma ilusão
carne e código,
falha e fabulação

a vida segue seguindo

tudo que eu queria era todo dia
te acordar e te cobrir de beijos

de novo chegamos bem pertinho 
tão perto que até falei
seja bem vinda de volta

mas a primavera não veio
hoje nublou, choveu e fez frio

teu suéter ficou aqui, esquecido no cabide
ainda guarda o cheiro doce, mas não aquece
falta o teu corpo dentro

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

beco diagonal, buraco da alice ou portal de moria

a porta, enfim, se abriu. depois de meses delirantes, teatros e silêncios, finalmente uma frestinha se abriu. pequena, quase tímida, mal deixando o ar circular. no breu, um olho suspenso investigava o ambiente antes de arriscar revelar um pouco mais do corpo. a mão permaneceu firme no trinco, segurando não só a madeira, mas a própria vida. pronta para fechar de novo ao menor sinal de perigo, ao mais breve gesto que lembrasse um pretérito mais que imperfeito.

eu esperava do lado de fora, sem pressa, deixando apenas o tempo respirar por mim. não trouxe promessas fáceis nem palavras ensaiadas. mas o desejo de construir algo novo, com a calma e a inteireza que antes não sabiam de mim.

sei que a porta pode se fechar a qualquer momento, que o trinco pode estalar de novo e me devolver ao lado de fora. mas se acontecer, não partirei vazio. levo comigo o compromisso de fazer tudo o que não fiz antes, ainda que sem garantia de retorno.

eu lia nas entrelinhas, nas linhas, no rodapé e nas notas escritas à mão no canto de cada página, lia medo e resistência, mas também uma vontade escondida de acreditar. porque apesar dos traumas, apesar do abismo cavado entre nós, há ainda uma verdade que pulsa; e nela se desenha um processo de cura.

a porta não se abriu inteira. apenas o suficiente para deixar passar o ar doce da primavera.