Férias de janeiro. Verão no talo. Casa de praia emprestada de amiga que estava em viagem astral. Ela deixou a chave dentro de um vasinho de flores pra gente pegar, mas nem precisava: a casa era aberta. Aberta mesmo. Tipo bioconstrução com conceito, poesia e janelas de vidro com todas as frestas e abismos expostos. Um suspiro de mata no nosso cangote. Ouvia-se até o silêncio do cipó. Era incrível de linda. A visão do paraíso.
Ficava longe da vila. Longe tipo cinco quilômetros. Ou seja: ou pedalando sob o sol de minha deusa ou dependendo da carona da boa vontade alheia. A vila era massa. Gente do mundo todo. As praias, uma extensão do céu. Mas o principal é que era na vila que as coisas funcionavam até tarde e tal: mercadinho, farmácia e tudo mais. Onde a gente tava não.
Uma das preocupações que derivaram desse fato foi a água. Água pra beber. Ainda bem que a gente tinha um filtro de água em casa. Mas olha, o nosso era de barro.
Bonito, ancestral, vintage-sertanejo e, lentíssimo. Muito lento.
Bonito, ancestral, vintage-sertanejo e, lentíssimo. Muito lento.
A água caía de gota em gota e a gente tomava gole como quem bebe tempestade.
E o filtro, tadinho, meditava enquanto a gente queria era tragar água como se fosse flor. A conta não fechava.
E nessa ânsia de não querer incomodar ninguém não pedimos ajuda. Nem a nossa amiga que morava a uma casa de distancia e já tinha perguntado mais de uma vez "Tão precisando de alguma coisa?" e a gente "Não, que é isso! Não precisa se incomodar!". A gente passando sede e ela ali do lado com aquele filtro acoplado direto na torneira. Água abundante. A vergonha não matava, mas tava começando a desidratar.
Eis que o universo abre caminhos.
Ela nos convidou pra jantar. Um date duplo: nós, ela e o namorado que parecia um personagem secundário de um filme francês. A gente aceitou, óbvio — não só pelo afeto e pela pizza, mas sobremaneira pela missão secreta: encher nossas garrafas d’água.
Levamos as garrafas — duas, grandonas, bem discretas. Uma sua, uma minha. A missão era clara: agir naturalmente. No meio da conversa, fingir sede, caminhar até o filtro, dar aquela enchida displicente, tipo "ai, vou só molhar a boca rapidinho", e plim: abastecidos. Agentes do improviso. Espiãs do desespero hídrico.
O jantar foi ótimo. Pizza artesanal, massa de não sei o quê, molho que lembrava infância. Conversa massa, rimos até do vento. Chapadas, a gente ria de qualquer coisa — principalmente do namorado dela, que falava como se tivesse vindo de outro plano dimensional. Era cada frase enigmática, uma obra de arte involuntária.
Mas eis que…
A gente sequelou de encher as garrafas.
Passou o tempo, passou a pizza, passou o riso… passou a oportunidade.
Quando a gente percebeu, já tava todo mundo se recolhendo, apagando as velas, dizendo "boa noite" com voz de mantra e nos conduzindo para o adeus.
Aí veio o golpe de ousadia:
A pia da cozinha era bem na janela, o filtro do lado.
Uma janela baixa, virada pra frente da casa, bem ali no nosso caminho de saída.
Você lembra, né?
Num ato de pura insanidade e sede ancestral, estendi o braço pela janela como quem colhe uma fruta proibida no jardim do Éden. Abri o filtro num clique cirúrgico. A água jorrou. Enchi a primeira garrafa. Quase sem respirar. Coração disparado. Você me esperava na rua rindo ansiosamente em silêncio com a mão na boca.
Tava enchendo a segunda, só que aí...
BARULHO.
Um som vindo do quarto. Um rangido. Uma luz acendendo. Uma respiração suspeita.
Fechei o filtro na pressa. E saí correndo o mais silenciosamente possível, parecia cinema mudo misturado com explosões de um filme de ação comercial. Saímos correndo feito crianças que roubaram doce — ou adultas que furtaram água.
A gente ria do grotesco, do absurdo e do mais absoluto banal. Ria como quem ri do fim do mundo. Gritava "vai, vai, vai!", tropeçando no mato. Desesperadas. Libertadas. Hidratadas.
E aí a gente percebeu.
A câmera.
A câmera.
Sim.
A câmera de segurança, meu amigo!
Apontada direto pra janela da cozinha.
Filmando tudo.
Cada segundo.
A missão inteira.
Em Full HD.
O crime perfeito desmoronando sob o olhar frio de uma lente.
Me lembro que... até no paraíso tem sede.
E o que importa é que a gente sobreviveu mais um dia. Obrigado por tanto.
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